21 • setembro • 2018

Maria, as mulheres e o Poder – Parte II


Eu precisei de alguns dias para continuar a conversa com minha amiga. Quando recebi as respostas, como vocês podem ler no texto “Maria: mulheres e o Poder – Parte I” publicado aqui no Moda Sem Crise, dia 14 de setembro, demorei um tanto mais para dar continuidade à conversa com minha amiga. Temia que as mensagens (ou conhecimento de causa, como preferirem) provocassem em mim um tremendo (e temido) desassossego, reação de minha alma quando fica perplexa. Acalmei-me e comecei a ouvir minha amiga vereadora, a Maria…

— Maria, por que você acha que apenas uma mulher foi eleita vereadora?

— Eu vejo alguns fatores, por eu ter sido a única mulher que ganhou o pleito:

: Ainda vivemos em um país extremamente machista. Santa Catarina, Região Sul de um modo geral, é um dos estados mais misóginos, no qual o homem é visto com mais respeito. Eles (os eleitores) entendem que ele (o homem) é quem deve estar em posições de liderança, de autoridade… A mulher ainda é tida e tratada como o sexo frágil, ela tem que ser a mãe, a dona de casa. Independente que ela saia para trabalhar, que ela saia para ganhar seu dinheiro, ela ainda é vista como uma pessoa… que não serve para ter poder. 

2º: Baseado nisso, vejo que é muito difícil para as mulheres se imporem e ganharem uma campanha. Algumas se candidatam, mas tem toda uma questão do partido. O partido é feito de homens. Aqueles que têm mais chance de ganhar é quem recebe o investimento do partido. E falando em dinheiro, as mulheres não recebem muito investimento, por isso elas não têm o que aplicar na candidatura. No meu caso, eu sei que tive dinheiro para gastar, eu tive um homem ao meu lado que me deu esse suporte; as pessoas votaram na mulher Maria, votando no homem José Fagundes. Essa é uma das questões, nem todos votam na “mulher” Maria, mas no homem Fagundes, representado pela filha Maria Fagundes. Essa é também uma outra questão…

3º: A reeleição. O nosso sistema político é feito para reeleger o político. Ele não é feito para colocar candidatos novos. Na legislação passada havia só uma mulher, ela fez mais votos do que eu, mas na coligação que ela estava não houve legenda, então ela não foi eleita, enquanto que a maioria dos vereadores foram reeleitos, assim como os deputados estaduais, federais… Eles são reeleitos, as mulheres não são, sequer, eleitas. Devido ao pouquíssimo tempo para se conhecer o político, a gente acaba votando nas mesmas pessoas, com os mesmos sobrenomes e com a mesma herança política. 

4º: O político é como um produto: o que é melhor vendido é mais votado. Se eu chego em uma papelaria e peço uma BIC, eles vão me dar uma caneta. Não importando a marca, né? Se o filho do Mendes Ferreira é candidato a Deputado Estadual e eu sou sua eleitora, vou acabar votando nele. Aconteceu isso comigo também…. E sei que acontece. E vai acontecer com o João Pereira. Somos um produto. O tempo de eleição é muito pequeno para colocar a mercadoria na mesa para as pessoas conhecerem. Quem tem um sobrenome conhecido é mais fácil de ser vendido do que uma pessoa desconhecida… Uma mulher desconhecida, mesmo que ela faça um trabalho fenomenal entre quatro paredes institucionais, ela não terá chance…

5º: Por fim, políticos conhecidos acabam depositando a sua herança em seus filhOs. E não em suas filhas. A questão de herança acaba sendo depositada no homem, diminuindo as chances das mulheres serem políticas. Eu sou uma exceção. Vejo, por exemplo, que a Ana Pereira teria muito mais feeling para ser política do que o João, que é uma pessoa mais tímida, mas ele é o filho homem, em quem o pai depositou a sua herança… […]

A entrevista segue. Maria aborda outras temáticas que envolvem sua atuação na Câmara de Vereadores, tão pertinentes quanto as apresentadas, mas, devido à significância e a grandeza do já relatado (e por uma questão de “tamanho do texto”), acho mais prudente dar uma pausa na conversa… e comentar.

A fala da Maria permite inúmeras análises

Fica claro que as questões de gênero se entrelaçam com questões de classe social, exemplificado na constituição dos herdeiros da Política, que Pierre Bourdieu nos ajudaria a entender muito bem. No entanto, por enquanto quero me ater às falas para mostrar que os discursos sobre o papel e o lugar da mulher, propagados ao longo do século 18 e 19, ainda são correntes em nossos dias, a despeito do que promulgam as leis da nossa Constituição. Além disso, percebam como esses discursos de desigualdade são sustentados pelo sistema político, o qual não permite a inclusão de novos atores em seu palco.

A mínima participação das mulheres no Poder é alimentada e retroalimentada por inúmeras práticas e discursos. Como Maria destaca, o partido é composto por homens e eles decidem a quem se destina os investimentos. Ao longo das minhas leituras descobri, pasmem, que muitos partidos criam candidaturas fantasmas, única e exclusivamente, para cumprirem com as exigências da Lei (ou cotas femininas, se preferirem). É possível afirmar, com isso, que a desigualdade de gênero – a exclusão da mulher da esfera pública – é o que faz do espaço público e político ser o que é: masculino em essência. Carole Pateman, Iris Young, Monica Karawejczyk apontam isso em suas pesquisas com muito mais profundidade e conhecimento…

Minha amiga de infância reconhece que o fato de ser filha do Seu José pode ter sido fator decisivo para ganhar o pleito. Sim, a personagem masculina endossou a sua prática política, o que comprova mais ainda que a Política ainda é um espaço de e para homens. Alguns podem ver isso como privilégio ou fraqueza. Eu prefiro ver como táticas de poder, porque tenho certeza que a atuação da Maria como política é produto único e exclusivo de seu estudo, de seu desejo, de seus esforços. Penso também que em um país no qual as mulheres precisam de cotas como garantia de vaga na disputa eleitoral, usar da “imagem de um homem” para ganhar espaço é estratégia de guerra, especialmente quando o campo de batalha é marcado por uma desigualdade de gênero estrutural. Como a antropóloga Debora Diniz, da Universidade de Brasília, nos lembra “nenhuma política de cotas é suficiente para a igualdade. É um instrumento forçoso em extrema desigualdade. Representam uma correção em situação de desigualdade extrema. Sem ela, seria ainda pior”.

Maria é a única mulher vereadora em sua cidade, dentre 19 vereadores.

Dezoito homens e uma mulher.

Isso não é algo que todos nós deveríamos questionar?

Qual é a equidade desta soma?

Qual é a representatividade destes números?

Contudo, como ela mesma reconhece, as mulheres não são consideradas aptas para “ter poder”. Elas, quando candidatas, não são eleitas. Os argumentos que sustentam esta tese são resultados dos discursos sociais, culturais, historicamente construídos. Posso parecer redundante afirmando isso o tempo todo, mas acredito que, quanto mais histórico e historiográfico for o nosso olhar, menos naturalizadas serão nossas práticas…

Não, os homens não são os sujeitos do direito universal, senhores da verdade e donos de uma virtude ímpar que os capacitam a analisar a sociedade com sobriedade e clareza, enquanto as mulheres permanecem condenadas aos sentimentos por serem mulheres. Todas nós somos seres racionais e capazes de analisar, pensar, propor, intervir e verbos similares. Eu poderia citar inúmeras pesquisas, de diferentes áreas do conhecimento, que comprovam que homens e MULHERES têm a mesma capacidade racional e intelectual; que o senso de moral que constitui um, constituí o outro.

Faço um convite para você se autoanalisar.

Homem ou mulher, pare e se analise.

Observe os espaços e as pessoas ao seu redor.

Perceba, em suas relações com os outros, se há algo que impeça as mulheres de ocupar cargos de governo. Se você encontrar algo, pare mais um pouco e questione: o que você identificou é uma verdade imutável, ou produto da cultura e da história?

O certo é que a ausência das mulheres no Poder só agrava os problemas sociais, políticos e econômicos. Diversos pesquisadores mostram que a presença da mulher nas cadeiras legislativas melhora drasticamente os setores da educação, sistema de saúde, cuidado com a infância, entre outros. Maria me confirmou isso: “Com certeza nós mulheres nos preocupamos com causas que para eles tanto faz, como tanto fez. A causa ‘animal’, a sustentabilidade, a infância, as mulheres”. Desse modo, eleger uma mulher não significa apenas aumentar a representatividade das mulheres e suas causas. É da ordem da urgência olharmos para o mundo que nos cerca de forma mais completa e integrada. Nada que permaneça com apenas um ponto de vista (masculino) dará conta de cuidar do todo, seja da cidade, estado ou país.

Como mudar esse cenário?

Fica claro que há um caminho longo a se percorrer no campo político.

Como ainda vivemos essa desigualdade?

Eu, particularmente, não tenho respostas para essa pergunta. Porque ainda permaneço no lugar do espanto e do desconforto.

Talvez, este seja mesmo o primeiro passo que todos nós devemos dar: o do assombro, pois, ao duvidar ou questionar algo que sempre nos pareceu certo, saímos do lugar cômodo da ignorância, sem que permaneçamos os mesmos ou simplesmente sigamos com nossas vidas.

As mulheres não têm o Poder.

Elas não estão no Poder.

Essa é a realidade

Mas isto não nos define.

Acredito que, como mulheres, podemos usar esse lugar da “não visibilidade”, de modo tangencial. Eu sou professora. Escrever deste lugar de fala autorizada, de Poder, é o  caminho que escolhi para provocar, incitar reflexões e deslocar o óbvio.

Qual é o seu?

Encontre-o

Use-o, mulher.

Sem medo.

Sem freio.

Sem modéstia.


Fabiana Nicolau Seraidarian

Fabiana Nicolau Seraidarian

>>> Fabiana Nicolau Seraidarian é graduada em História pela Universidade do Vale do Itajaí, especialista em História Social pela Universidade do Estado de Santa Catarina e mestre em História da Educação pela Universidade de São Paulo. A História é o seu amor mais antigo. Sempre gostou de pensar o presente dentro de uma perspectiva histórica: como nos tornamos o que somos? Ela acredita que um olhar histórico nos tira do campo do óbvio e nos lança sobre o chão da crítica, da análise, do questionamento, abrindo assim caminho para re-invenções de nós mesmos e do mundo. Desde que virou “do lar” a pia da cozinha, a tábua de passar e o fogão nunca mais foram os mesmos. Vestida de dona-de-casa é que trava os maiores debates filosóficos e históricos sobre si mesma, sobre as mulheres, os homens, sobre a educação, sobre gênero. Bem ali no meio da cozinha ou diante do ferro de passar ela é tomada pela realidade e tudo se torna objeto de análise dessa sua mente que não cansa de historiar. E é esse o chão que ela pretende trilhar como colunista do Moda Sem Crise: falar do que toca, do que incomoda, do que faz sorrir, do que faz chorar, do que faz gritar. Falar da vida, do cotidiano, das mulheres, dos homens, das crianças, da escola, das vestes, do belo, do feio – história da gente, de gente. Fale com a Fabi | E-mail: nicolau.fab@gmail.com



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