MODA – A periferia resiste. E é no universo da moda, um dos espaços sociais onde a urgência de promover e valorizar o indivíduo é tão importante quanto estimular o exercício da liberdade e da crítica ao enxergar o mundo, que a periferia se empodera, seja provocando um novo olhar sobre a moda, seja questionando padrões de beleza, seja inventando moda. Na última sexta-feira, o Centro Educacional Unificado (CEU) Paraisópolis, Zona Sul de São Paulo, voltou a ser palco para o desfile das coleções de Alex Santos, Bruno Dellum, Andreia do Carmo, Kelly Sulysman, o casal Caio Nunes e Samela Emile, Peterson Leandro, Marcus Rochah e Matheus Couto. Empoderar, resistir – e com isso transformar – são verbos que fazem parte do dia a dia desses talentosos estilistas que apoiados pelo Periferia Inventando Moda – projeto que nasceu na comunidade de Paraisópolis – vencem desafios e fortalecem bravamente a identidade e a beleza de quem vive nas periferias da Capital paulista.
Pouco antes das criações para o Inverno 2018 cruzarem a passarela, enquanto os estilistas ainda cuidavam no backstage dos últimos detalhes dos desfiles, o auditório do mesmo CEU, reunia a modelo e ativista Aretha Sadick, o estilista afroeempreendedor Isaac Silva, a especialista em fashion marketing Magá Moura e a idealizadora do África Plus Size Brasil, Luciane Barros para um bate-papo mediado pela jornalista Cris Guterres sobre a moda e a quebra de padrões, assuntos com os quais lidam diariamente. Após contarem suas histórias, um convite que envolvia algum voluntário da plateia, levou também ao palco Rafael Nunes Vieira. Morador de Diadema, cidade do Grande ABC, o jovem de 20 anos foi o coroado da noite, e sentando no trono – uma poltrona vermelha – contou também sobre suas experiências de resistência.
“Sou gordo e sou gay. E hoje em dia falar sobre isso é algo extremamente libertador. Desde criança, criado em uma família tradicional demais, convivi com certo preconceito e machismos. Só esse ano meu pai soube, por meio da minha madrasta, da minha sexualidade e foi toda aquela ladainha de jogar a culpa em alguém. E era simplesmente entender que eu poderia ser uma pessoa diferente das outras. Cresci assistindo eventos de moda, apaixonado por moda e ter uma boneca, desenhar uma roupa, ter uma pelúcia era motivo de brigas na minha casa. Na escola era a criancinha que parecia uma bola de basquete, mas os colegas não entendiam porque era querido por professores, já que era uma criança gorda. Conforme fui crescendo, comecei a ter uma visão diferente do mundo, fui vendo meu espaço, comecei a trabalhar em uma ONG que atendia crianças carentes da região e comecei a perceber quem eu era e como queria ser visto pelo mundo.”
Emocionado, Vieira disse também onde encontrou inspiração para se tornar quem ele é hoje e no que quer se tornar em Magá Moura e no estilista Isaac Silva. “Passei a acompanhar o trabalho da Magá [Moura] e isso me inspirou. Já vivi muito preconceito e nesta mesma época comecei a entender como sou belo sendo gordo, gay e apaixonado por moda. Isso me distanciou de muitas pessoas. Cheguei a procurar pelo Isaac [Silva] esse ano para mostrar alguns desenhos porque criei coragem. Até mesmo passei a pintar as unhas, usar saias, gosto de usar coisas do armário feminino sem a necessidade de ter um rótulo. Minha mãe outro dia me falou: ‘você está comprando uma briga muito grande com a sociedade’ e revelou que tinha medo. Mas prefiro ter a liberdade de ser quem sou. Não vou me esconder para agradar uma sociedade hipócrita. Não quero ser um nicho e sim me permitir. Somos uma estante inteira de vários nichos e ser descobri que devo ser resiliente não só na moda, mas na vida. ”
O estilista que hoje serve de exemplo e inspiração comentou sobre o desabafo de Vieira. Silva que atualmente vive na Capital paulista, veio do Nordeste, segundo ele, numa tentativa de fuga ao dizer para a família também sobre a sua homossexualidade. “É muito forte, mas encorajador quando você diz quem é de verdade. Você se torna cada dia uma pessoa mais forte e a vida é uma só, se você não for feliz aqui e agora o que vai valer a pena?”, questinou. Silva ressaltou também que para ser feliz é preciso não ter vergonha de ser quem é e o amor próprio é o caminho para uma vida melhor. “Amar a si próprio é um romance para a vida inteira”, disse citando Oscar Wilde.
Magá endossou sua fala. “Eu acredito muito no amor próprio. Desde o dia que comecei me amar a vida se tornou incrível. Eu encontrei a minha liberdade no meu amor próprio e a partir disso fui ganhando força a ter personalidade. Tudo veio do amor que tenho por mim que é imenso e inabalável”, afirmou.
Uma unanimidade entre os convidados, ao amor próprio foi citado também por Luciene. “Os nossos corpos existem, os nossos corpos resistem. E é isso. E é comum encontrarmos força em outras pessoas. É uma questão de fortalecimento mútuo que está nos fazendo crescer e fazer com que as coisas tomem novos rumos. Para mim o amor pŕoprio serviu de combustível para que eu conseguisse não só visualizar a questão da mulher gorda e preta, mas correr atrás. Fez com que eu me visse e acreditasse, mesmo sendo essa mulher que tem um corpo negado pela sociedade. Mas costumo dizer, o corpo é meu e o poder é todo nosso. Acredito que consigo atingir pessoas sendo reflexo delas, da mesma forma que são reflexo para mim”, contou.
A jornalista Cris Guerra encerrou a roda de conversa com uma fala bastante importante sobre a moda ser resistência. “Sou mulher preta e fui invisível a vida inteira. Durante 30 anos não estava nos jornais, nos comerciais, em lugar nenhum. Eu não estava dentro de mim porque não me reconhecia. Eu não sabia quem eu era. O meu cabelo era alisado e escondia a bunda, porque ter bunda grande não era legal. Não era legal ter pele preta. Nunca foi legal dizer ‘meu pai é nordestino’. Temos que ter reconhecimento de quem nós somos. E isso é difícil porque as pessoas ao nosso redor dificultam nosso reconhecimento. E essas pessoas vieram aqui hoje porque são resistência. O PIM transforma protagonistas, mas as pessoas precisam nos abrir espaços. A luta é constante. É resistência. Todos os dias tenho que dizer que estou no lugar certo. Eu faço parte. Vocês fazem parte. Todos nós fazemos parte”, concluiu.
Confira o que rolou nos desfiles do 6º PIM
Após o importante bate-papo com os convidados, o 6º PIM deu início aos desfiles e colocou na passarela as coleções de Alex Santos e Bruno Dellum, cujas marcas levam seus nomes, Andreia do Carmo da Hypnotic Bijoux, Kelly Sulysman da KSulysman Store, o casal Caio Nunes e Samela Emile da marca Simplesmente, Peterson Leandro da Peah P. Cloting, Marcus Rochah da Mete a Marra e Matheus Couto da Couto Store.
O primeiro estilista a desfilar sua coleção na noite do 6º PIM foi o criador do projeto, Alex Santos, de 26 anos. Adepto de um conceito que ele mesmo descreve como glamouroso, arrojado, transgressor e pessoal, sua nova coleção “Rise for Victory” mostrou para quê veio em produções recheadas de peças em jeans com patches, moletom, além de vestidos, casacos, pantalonas e peças em pelúcia e brilho. “Nesta coleção mostro um pouco da veia sombria do meu lado criativo, continuando minha inspiração nos anos 80 como se os tivesse vivido neles. Cada peça tem uma história que se mistura com a minha, unindo conceito da alta moda com a estética urbana característica da periferia de São Paulo, oriundo da comunidade de Paraisópolis”.
Moradora do ABC Paulista, a estilista Andreia do Carmo, 40 anos, apresentou a coleção “Jeans”. Andreia que vê a moda como um posicionamento político, busca sempre se manifestar por meio das peças que produz, e para isso aposta no movimento upcycle e faz da moda consciente sua bandeira. “Eu sempre tento mandar uma mensagem, protestando contra o consumo desenfreado e o abuso do homem contra a natureza e os animais. Comecei a comprar calças jeans e transformar em shorts customizados e em cada peça, levava um pouco de mim, da minha personalidade com uma influência rock ‘n roll. Transformava peças básicas em estilosas, rasgadas, com caveiras e spikes para um público alternativo. Consciente da importância da reciclagem e da reutilização dessas peças, eu decidi customizar todos os tipos de jeans”, ressaltou. Para a coleção que apresentou no 6º PIM, Andreia desfilou peças de fato apenas em jeans, com uma releitura dos anos 80.
Baiano, de origem indígena, o estilista Bruno Dellum apresentou nesta edição do PIM a coleção “Equilíbrio”. Dellum que é autodidata brinca com a experiência transitar em dois mundos, mostrando além da dualidade dos gêneros, o reflexo do ser. “Em uma vibe futurista, trago a libertação e imponência nas peças”. Para isso, Dellum trabalhou mix de texturas, tecidos e geometrias. “O must have da coleção é composto por peças completas nas cores: branco, preto e prata. Macacões, vestidos, calças flare, pantalonas, somado com t-shrits, saias e cropped estarão presentes”. Em uma apresentação que emocionou, Dellum deu seu recado. “Tento quebrar os padrões impostos pela sociedade, trabalho em prol as dualidades de gêneros, desconfigurando o que é considerado de menino e de menina. Minha moda é a resistência, o odiado, as coleções falam muito dos sentimentos às vezes de revolta, solidão, plenitude e existência.”
Kelly Sulysman, de 22 anos, assina a marca KSulysman. Ao som de “Under Pressure”, canção da banda britânica de rock Queen, lançada em 1981, mas igualmente autentica e original em pleno 2017, Kelly mostrou um desfile de peças confortáveis, e com estilo street/alternativo, mais uma vez refletindo seu DNA artístico. A coleção “Pressure” trouxe à tona a reflexão sobre a pressão constante em que vivemos no dia a dia. “E essa pressão é sobre tudo, sobre nossos corpos, sobre nossa mente, e tudo que nos cerca e acaba nos fazendo viver no limite de nós mesmos. Segundo Kelly, o desenvolvimento de suas coleções se dá através do que mais a toca no momento em que está criando. “As manifestações se dão basicamente desde refletir sobre a imensidão de tudo aquilo que nos rodeia, e pensar que o que realmente importa as vezes não é o que a sociedade nos impõe”, afirmou.
A marca Simplesmente do casal de namorados Caio Nunes, 21 anos, e Samela Emile, 19, foi lançada na última edição do PIM, em novembro de 2016. Com a coleção do 6º PIM, a dupla apostou no clima de romance e nas peças que flertam com o minimalismo, trouxeram tons de preto, cinza, um azul metálico e uma pitada de estampas. “Procuramos sempre mostrar que o simples faz parte de um ponto de vista. Para ser fashionista não é preciso de um look mais ousado, procuramos sempre mostrar que o diferente depende de nós. O preto nunca será básico, o nude nunca será sem graça e o simples nunca vai passar batido por nós”, relata a estilista sobre o conceito de sua marca.
Após seis anos trabalhando em lojas de roupas e ter se aproximado ainda mais do mundo da moda, além das influências que já tinha em sua família, o jovem estilista de Carapicuíba Peterson Leandro, 27 anos, está entre os nomes que inventam moda no PIM. Sua marca Peah P. Clothing tem um estilo urbano, alternativo e diferente. “Gosto de trazer a diferença, de viver fora de um padrão, não existe lei se tratando de moda, temos que nos sentir bem e nos aceitar da forma que nos vestimos”. Para a coleção apresentada na 6ª edição do evento, Leandro apostou no estilo totalmente urbano e oversize e a cor flame como predominante.
A Mete a Marra, marca de Marcus Rochah, de 30 anos, desfilou atitude. Enquanto modelos se divertiam jogando futebol ou andando de skate na passarela – a marca tem o esporte em seu DNA – um dj e um baterista faziam o som que agitou não só a passarela. A coleção “Diferença” mostrou o novo posicionamento da marca que conta com o slogan “Vista sua atitude” e declara: “A mensagem sempre por trás de cada peça é que se você acredita em uma coisa, tem que correr atrás. PONTO. É essa ATITUDE que sempre trago em cada peça”, como afirma Rochah por meio de camisetas, shorts, bonés e vestidos.
Matheus Couto, 22 anos, decidiu que precisava de algo que realmente o permitisse ser louco e ousado o máximo possível do seu meu jeito, foi assim que nasceu a Couto Store. Segundo Couto, a marca busca empoderar sempre seus clientes, brincando com combinações de cores e estampas. “Procuro sempre em minhas coleções e com cada peça que produzo, causar um impacto de certa forma”, explica. Na 6ª edição do PIM, Matheus Couto que pretendia desmistificar sua marca revelou e brilhou ao demonstrar talentos para criações que foram além das estampas. “Quero que as pessoas vejam que não somos apenas uma marca que faz conjuntos estampados. Não somos apenas cores fortes e extravagantes. Podemos causar”, disse ele que de fato causou e deixou claro o quanto pode e deve crescer em uma desfile maravilhoso de peças maravilhosas.
Todas as fotos foram cedidas em baixa resolução gentilmente por Tulio Vital, coordenador do curso de fotografia do Periferia Inventando Moda. As imagens podem ser compradas em alta resolução. O objetivo é com a venda financiar a criação e publicação de uma revista impressa. As informações estão disponíveis neste link do vakinha. O PIM espera arrecadar com o financiamento coletivo R$ 2500 para tornar o projeto realidade.
*Esta publicação contou com a colaboração de Júlia Rocha Paulino e de Ana Paula Aureliano <3
4/4 – Este é o quarto e último texto de uma série de quatro que publicaremos a respeito do Periferia Inventando Moda. O primeiro deles você confere clicando aqui em “1/4: De volta às origens, 6º PIM acontece no CEU Paraisópolis“, o segundo “2/4: quem inventa a moda que você vê no 6º PIM? Confira os estilistas que desfilam nesta edição” e o terceiro 3/4: A 6ª edição do PIM faz de Paraisópolis Passarela – Confira aqui o perfil de outras quatro marcas”. Fique de olho, vamos contar mais sobre a história de cada uma das marcas e você confere aqui no site e também em nossas redes sociais a cobertura completa do evento.
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