23 • março • 2018

Oito de março, dia da mulher


Esses dias conversando com uma amiga ela compartilhou comigo o quanto ficou chateada com o fato do marido não ter dado um “presente, nem se quer parabéns pelo meu dia. De outro amigo escutei o seguinte: “não dou Feliz Dia das Mulheres, porque o dia da mulher são todos os dias”.

Ouvindo tudo isso me dei conta que por aqui essa data passa despercebida. A verdade é que se meu marido fizesse algum post sobre “o quanto eu sou especial, mulher de coragem, e etc.” (post né? Nada mais romântico do que se declarar virtualmente.)… A verdade é que por fora eu agradeceria com um emotion de coração, só para não ser mal-educada, mas por dentro, ah por dentro iniciaria um debate teórico-filosófico-sociológico que em segundos transbordaria em palavras, panfletos e manifestações saindo da cozinha em direção a sala, passando pelo escritório e terminando com um minuto de silêncio.

Graças a Deus não houve post, não houve nenhuma manifestação que envolvesse o “tal dia”. E seguimos dançando conforme a música do nosso cotidiano.

O que me incomoda nessa data comemorativa?

Vamos a lista…

Nº 1:

Como historiadora acho imprudente e inconsequente a forma como “o dia da mulher” faz parte de discursos e práticas que o deslocam da sua historicidade. Já li em diversos lugares: Comemora-se o dia da mulher em prol das mulheres que morreram queimadas em uma fábrica nos EUA em 1911 (e ponto final).

Essa versão pode ser muito confortável aos ouvidos mais sensíveis, a medida que essa narrativa se remete a um acontecimento distante, trágico e injusto, o que dá um tom de heroísmo a mesma. Contudo, esta versão nos leva ao engano e de certa forma nos aliena.

Antes do ponto final da frase deveria haver uma vírgula porque a história não parou no incêndio, na verdade ela nem começou com ele.

Não que o incêndio não seja verídico. Ele realmente aconteceu na Triagle Shrtwaist Company, sediada em New York. A questão é que ao se contar apenas a tragédia do incêndio, as protagonistas da criação do “dia da mulher” são silenciadas. E o silêncio… ah o silêncio, ele deixa que outros contem a história e estabeleçam as suas verdades.

A proposta de criar um Dia Internacional da Mulher emergiu em meio a Segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, que aconteceu em Copenhague, no ano de 1910. Essa decisão foi tomada por mulheres que faziam parte dos partidos socialistas e organizações de mulheres socialistas ao redor do mundo. Para essa conferência eram enviadas delegadas e foram elas que apresentaram a necessidade de criar este dia. Entre estas mulheres destaca-se a professora, jornalista e política alemã Clara Zetkin.

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A alemã Clara Zetkin – Foto: Google Imagens

Qual objetivo principal da instituição dessa data? A reivindicação do sufrágio feminino, em primeiro lugar, como também: legislação protetora das trabalhadoras, assistência social as mulheres e seus filhos, igualdade de trato as mães solteiras, provisão de creches e jardins de infância, alimentação gratuita, educação de qualidade. (Enquanto escrevo, penso: não são estas também as nossas reivindicações?).

O Dia Internacional da Mulher foi realizado a primeira vez em 19 de março de 1911. E é importante ressaltar que não se tratou de uma festa, de um “uhu viva as mulheres”. O “Dia” era composto por manifestações e assembleias populares onde se debatia os temas concernentes as mulheres e a causa dos trabalhadores, a luta de classes e ao socialismo. Até a deflagração da Primeira Guerra Mundial 11 países estavam engajados com este projeto liderado por Clara e outras mulheres. Perceba, que a princípio se trata de demarcar um propósito de luta. O dia, o mês não eram o foco.

A primeira vez que a data 8 de março foi associada ao Dia Internacional das Mulheres foi em 1914 por causa de um cartaz. Nesse cartaz estava escrito: Dia da Mulher/ 8 de março de 1914 – Sufrágio Já! O mesmo tinha como ilustração uma mulher vestida de preto agitando uma bandeira vermelha.

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Cartaz de 1914 – Foto: Google Imagem

Mas, somente em 1921, em uma Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, foi instituído que o Dia Internacional das Mulheres seria o dia oito de março.

A criação do “dia da mulher” fez muito barulho. Vozes femininas. Não foram homens que inventaram essa data. Não foi simplesmente um ato de comoção que por fim gerou uma homenagem. Foi uma reivindicação. Não tinha a ver com a exaltação de uma certa essência feminina. Não tinha a ver com aparência. Tinha a ver com a vida, a dignidade, a luta.

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Mulheres grevistas nos Estados Unidos (esq.) e na Rússia no início do século 20 – Fotos: Google Imagem

Nº 2:

A comemoração do “dia da mulher” é também filha do seu tempo. Para além de toda capa de propaganda e consumo que envolve o “nosso dia da mulher” (e isso mereceria uma tese, mas não tenho espaço para tanto, risos), o que mais me intriga, irrita, incomoda, deixa brava… E por aí vai, são os discursos e práticas que associam o “dia da mulher” a uma “essência” que precisa ser enaltecida.

“Ser mulher” ou “ser homem”, ser alguém nesse mundo, não tem a ver com essência. Tem a ver com a história de vida, com o processo de escolarização, com personalidade, com gostos, com experiências, com leituras, com encontros e também desencontros. Nada muito certo, nada muito exato – “ser” é um infinito de possibilidades.

A exaltação a essência é o outro lado da moeda do “padrão”. Padrão de beleza, padrão de feminilidade, padrão de mulherpadrão. E assim entramos no jogo que todas nós conhecemos bem: mulher tem que fazer isso; aquilo é coisa de mulher; mulher pode, mulher não pode; e em alguns casos termina em: foi estuprada porque não soube se portar como uma mulher “de respeito”. Terrível não, falar de essência e chegar ao estupro?

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Foto: Pixabay

É porque às vezes nós precisamos desses recursos para provocar um choque. A verdade é que essa conversa de essência nos limita, nos demarca, nos silencia. Cria estereótipos e esses por sua vez são perversos.

E por que são perversos? Porque ao aprendermos que “mulher é assim e não assado” exigimos de nós mesmas escolhas, condutas, falas, que não tem nada a ver com o que pensamos sobre nós mesmas. E na maioria das vezes nem existe demarcação entre “quem eu sou e quem dizem para eu ser. Há uma simbiose entre os estereótipos e o que somos.

E como tudo isso acontece? Aprendemos. Somos constituídas por essas práticas e discursos; palavras e textos.

E eu vejo a tal essência aqui, mas também ali, entre os discursos mais revolucionários. Uma demanda, nem sempre clara e muitas vezes subliminar, para que eu pense y e não x. Para que eu seja do leste e não do oeste. Para que eu leia isso, e não aquilo.

Há um tempo fiz essa constatação enquanto, em prantos, limpava os armários da cozinha. E por que eu chorava? Porque cuidar das coisas da casa – ser’do lar – evocava em mim o sentimento inferioridade: é isso que vai resumir a minha vida?

Demorou muito para eu perceber:

1) que para não ser transformada nessa “essência do lar”, eu releguei o trabalho de casa a um lugar de repúdio;

2) a casa precisa ser limpa;

3) O marido trabalha;

4) Ele não sabe limpar;

5) Quando ele varre eu saio varrendo atrás, porque eu limpo melhor – ou seja, eu prefiro fazer sozinha.

Eu tenho uma amiga, a Cleo, ela trabalha de segunda a sexta na casa de uma família como empregada doméstica. Aos sábados ela limpa a casa dela. Cuidar da casa – da dos outros ou da sua própria – nunca foi lugar de vergonha. Pelo contrário, coloca comida na mesa.

O que para mim emergia como um dilema, para a Cleo produzia salário e sustento. Os anos em que passei lutando para fugir dos estereótipos femininos, levaram-me a um outro cerco: eu também discurso de verdade sobre como as mulheres deveriam ser. Provei do “meu veneno”, diriam as más (e muito más) línguas.

Não se trata de veneno. Se trata de uma constatação.

Sermos mulheres não nos torna iguais e naturalmente solidárias com uma causa essencialmente feminina. Há mulheres brancas que desprezam mulheres negras (é só olharmos os noticiários). Há mulheres que concordam com os discursos que dizem que a mulher violentada tem “culpa no cartório”. Há mulheres que escolhem cuidar da casa, mas não abrem mão dos livros de literatura e filosofia. Existem as que trabalham o dia todo. E há aquelas que chegaram no topo do mundo, mas dariam tudo para descer dele. Há mulheres ricas que se envolvem com as causas sociais, não porque viveram a miséria, mas porque seu coração bate.

Somos mais complexos, e o que sou, o que penso, o que falo é permeado por inúmeras falas, práticas, textos, verdades que por vezes se contradizem, tantas outras se completam.

Todo discurso do “dia da mulher”, todo parabéns que ressalta algum tipo de essência, me incomoda. Incomoda o discurso produzido pelo outro e por mim mesma. Tudo o que me encerra em um lugar, tudo o que aprisiona e limita quem somos, me incomoda. É tão claro para mim que somos como um “entrelugar” e que talvez a melhor definição que podemos receber seja – humano, SER humano.

Contudo, somos fadados a esses aprisionamentos linguísticos e discursivos, e ironicamente, os desejamos para nós mesmos e impomos aos outros.

Somos feitos de palavras – o dia da mulher, o ser mulher. Se não do jeito a, do jeito b. E isso tem um “quê” de ironia, porque ao mesmo tempo que queremos fugir da essência, do esteriótipo, do padrão para sermos o que quisermos ser, nós não conseguimos fugir das palavras – essa nossa necessidade de dar nome, de definir, de criar padrões, normas de conduta, verdades. Esbarramos neles diariamente. E quando isso acontece ou nos desconstruímos e aceitamos nossa complexidade e impossibilidade de essência. Ou, quando necessário nos unimos, levantamos a nossa bandeira – SOU “ser” MULHER – e lutamos em nome de uma ou muitas.

E por que isso acontece?

Porque toda nossa diversidade, complexidade, toda essa multidão que dão o nome de “mulher” ainda esbarra, tromba, colide com o machismo, com a misoginia, com a violência.

E não, não se trata de um retorno a uma essência feminina com a qual todas nós nos identificamos e pelo qual lutamos. É um “ser mulher” histórico – carregada de uma identificação produzida no chão da vida, na marca no corpo. Histórias que se cruzam, que se repetem e que precisam ser contadas.

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Foto: Pixabay

E + Dica da autora: Mês passado li um livro que me colocou em contato com experiências que eu nunca vivi, mas que de certa forma me identifiquei. Outras tantas fazem parte da minha rotina, mas eu nunca tinha me dado conta. “Os homens explicam tudo para mim” da Rebecca Solnit precisa ser lido. É leitura provocativa  e gostosa de se fazer.

Antes que perguntem: mas, você é uma feminista? Não, eu sou a Fabiana.


Fabiana Nicolau Seraidarian

Fabiana Nicolau Seraidarian

>>> Fabiana Nicolau Seraidarian é graduada em História pela Universidade do Vale do Itajaí, especialista em História Social pela Universidade do Estado de Santa Catarina e mestre em História da Educação pela Universidade de São Paulo. A História é o seu amor mais antigo. Sempre gostou de pensar o presente dentro de uma perspectiva histórica: como nos tornamos o que somos? Ela acredita que um olhar histórico nos tira do campo do óbvio e nos lança sobre o chão da crítica, da análise, do questionamento, abrindo assim caminho para re-invenções de nós mesmos e do mundo. Desde que virou “do lar” a pia da cozinha, a tábua de passar e o fogão nunca mais foram os mesmos. Vestida de dona-de-casa é que trava os maiores debates filosóficos e históricos sobre si mesma, sobre as mulheres, os homens, sobre a educação, sobre gênero. Bem ali no meio da cozinha ou diante do ferro de passar ela é tomada pela realidade e tudo se torna objeto de análise dessa sua mente que não cansa de historiar. E é esse o chão que ela pretende trilhar como colunista do Moda Sem Crise: falar do que toca, do que incomoda, do que faz sorrir, do que faz chorar, do que faz gritar. Falar da vida, do cotidiano, das mulheres, dos homens, das crianças, da escola, das vestes, do belo, do feio – história da gente, de gente. Fale com a Fabi | E-mail: nicolau.fab@gmail.com



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