Quando a Má sugeriu-me o tema para a coluna deste mês, eu aceitei de prontidão. A única coisa que eu não queria era colocar no papel minhas próprias memórias, deixar o texto tão pessoal a ponto de escorrer lágrimas, ouvir gritos de dor e de revolta.
Eu não queria falar da história que me atravessa, por isso começo o texto com o meu silêncio.
Escolho o silêncio para conseguir caminhar pelas tangentes, e assim, não correr o risco de expor quem não deva ou eu não queira. Porque ao fazer isso, um pouco de mim transbordaria para além do que eu consigo dar conta.
Às vezes o silêncio é o calmante necessário – o “sossega leão” da alma.
Não que eu nunca fale sobre isso, pelo contrário. Eu falo. Mas, quando abro a boca sinto uma geleira se formando aqui dentro – porque o falar não me dói. A verborragia sobre o assunto estanca a dor do peito, silencia o grito na garganta. Escrever é o oposto. Escrever para mim é como colocar o dedo na ferida. É sentir a dor que eu, por hora, nego-me a sentir.
E não se trata apenas de uma dor. São muitas
(…)
Por que ninguém mete a colher?
Foi a pergunta que me fiz durante essa semana, enquanto assistia, repetidamente, às noticias sobre o assassinato de Tatiane, e de tantas outras mulheres que também foram mortas no decorrer dos últimos dias...
O tema da violência doméstica contra a mulher é complexo e deve ser abordado como tal. Ao tratarmos simplesmente no âmbito vitima x agressor, estaremos sendo injustos e tão violentos quanto aquele que agride. Porque o ser humano é complexidade em carne e osso.
O que leva uma mulher a aceitar o tapa na cara? O xingamento? O autoritarismo?
O que autoriza um homem a espancar? O que lhe autoriza a proibir de trabalhar?
O que faz a vizinha fingir que não ouve? A filha se esconder no quarto? O filho não gritar por socorro?
Medo. Nós temos medo de nós mesmos. Reconhecemos no outro violência tamanha que a paralisia se torna a nossa primeira opção. E não coloco o medo na roda como justificativa para a ausência de socorro, mas como uma forma de denúncia. A que ponto chegamos? Que violência estrutural é essa que nos faz ter medo uns dos outros?
Quero trazer a realidade do medo para mais perto…
Você, mulher que está lendo esse texto agora, nunca teve medo de andar sozinha durante a noite? Eu já, e por diversas vezes. Durante o meu mestrado, na maioria dos dias eu voltava para casa tarde da noite. Minha quitinete era do lado da universidade, mesmo assim, sempre ficava apreensiva e acelerava o passo para “chegar logo”.
O que eu temia?
Encontrar com um homem que quisesse fazer algo comigo. Eu tinha medo de ser estuprada.
Meu Deus! Que querer é esse que anula a vontade do outro por completo? O que é isso que autoriza um homem a violentar uma mulher? Tocar no corpo. Mexer no cabelo. Falar “gracinhas”. Constranger... Que atitudes são essas que impõem o medo como reação? O que sustenta tais comportamento?
Desculpe-me, mas não se pode tratar desse assunto a partir de análises rasas e superficiais...
“Eu não tenho coragem de ligar para a polícia. Ele pode vir aqui e me matar”. Quem conviveu de perto com a violência certamente se reconhece nessa fala. Assim, não meter a colher é também autopreservação.
Mas, não sejamos inocentes. Muitas vezes à autopreservação vem acompanhada do egoísmo, do mais puro individualismo: “Não tenho nada a ver com isso. Eles que se entendam”. Não nos sensibilizamos nem mesmo com o laço humano que nos aproxima – ou deveria nos aproximar.
A que ponto chegamos?
Há também quem não deixe meter a colher. Aceita e tolera toda sorte de abuso e agressão pelos mais diversos motivos – proteger a família; assegurar o sustento. E por detrás disso há, mais uma vez, o medo: medo de novas agressões; medo de não conseguir manter financeiramente a casa, porque o marido é o dono do dinheiro; medo de ficar “na rua da amargura”; medo de ficar sozinha. Não consegue vislumbrar a possibilidade de viver uma outra vida.
Há quem não meta a colher em sua própria vida por amor… Sim, por “amor” – porque acredita que “só é explosivo quando bebe. Quando está sóbrio, ele me trata tão bem”.
O que essa mulher não consegue perceber é que antes de levar o primeiro tapa na cara, o marido já lhe proibiu de trabalhar; definiu um horário para chegar em casa; desprezou inúmeras vezes a comida que ela preparou todo santo dia... Tais atitudes também atuam no campo da violência, mas não se tem ciência disso. E, por fim ela o “ama”.
E esses sentimentos ganham uma dimensão ainda mais complexa quando a figura que bate é a paterna. Não envolve somente dois personagens, existem outros: os filhos. E o agressor é alguém tão próximo e há tanto sentimento contraditório em jogo, que o silêncio é sem dúvidas a primeira reação, e talvez a única.
Quem está do lado de fora do coração, não entende. Não entende como ela pode aceitar tanta humilhação. Porque embora nunca tenha levado um tapa, quem convive com a violência doméstica apanha na alma, e por isso não entende e talvez nunca irá entender que amor é esse… E o que sobra é a revolta mergulhada no silêncio, no medo. Revolta que, às vezes, transgride e tanta com mãos de adolescente defender a mãe da brutalidade do pai.
Há também aquela que não consegue fazer nada por vergonha… Sim, vergonha. “O que falarão a meu respeito? Quem acreditará na minha história?”. Como se a vítima de violência necessitasse de uma explicação para além do próprio ato. Mas, a vergonha é verdadeira e pautada, principalmente, naquilo que aprendemos sobre o “ser uma mulher decente”, “uma boa esposa”, “uma filha exemplar”.
Mas, há quem meta a colher, e o faz com unhas e dentes. Há quem constrói estratégias e grita, e defende, e protege. E para conseguir fazer tudo isso, além do amor, empatia e identificação com aquela que apanha, há a convicção de que a violência dentro de casa é inaceitável, é injustificável, é injusta, é imoral, é ilegal.
Meter a colher é a desconstrução de um padrão de pensamento e comportamento forjado histórica, social, linguística e culturalmente. Padrões que constituem o “ser mulher” e o “ser homem” permeados pelo machismo e pela misoginia, endossados, por sua vez por discursos e práticas provenientes dos mais diversos campos – medicina, direito, religião, pedagogia, biologia – e por mais de séculos.
E precisamos falar sobre isso. Precisamos ensinar que determinados comportamentos não são naturais, mas foram aprendidos e por isso podem e devem ser des-aprendidos. Cabe-nos perguntar qual a raiz dos discursos que salvaguardam as condutas de violência e de submissão. Sim, porque a própria submissão feminina a situações como estas, tem profundas relações com a forma como a mulher se percebe enquanto indivíduo e sujeito de sua história – seu papel, seu lugar, sua fala.
Mulher não gosta de apanhar (e se você acredita que sim, sugiro que peça a um amigo seu que lhe dê um tapa na cara…). Manter-se em uma situação de violência é uma ”escolha” muito mais complexa. E tenho convicção que esta tem relações profundas com a forma como fomos ensinados a ser, a viver, a fazer.
Mulher não merece, homem não pode. Mulher não é propriedade, homem não é dono. Mulher não pediu por isso, homem não tem o direito. Não é não.
Meter a colher é compartilhar da humanidade. Meter a colher é amar o próximo, mesmo quando este lhe seja desconhecido. Meter a colher é ensaiar a construção de novas narrativas: ela não foi morta, ela sobreviveu.
Na dúvida, aja. Tenha a certeza de uma coisa: a maioria das vezes o socorro não virá de dentro de casa, porque quem está a dentro também precisa ser socorrido.
E ligue para o 190. Mas, não fique por isso. Quando cruzar por uma mulher que vive em situação de violência e não consegue enxergar sua condição, seja a voz que alerta. Quando uma conhecida não consegue sair de casa, porque não tem como sustentar a si mesma e aos filhos, seja aquele que vai ajudar com o pão de cada dia. Quando uma amiga quiser sair desta situação, mas não tiver para onde ir, seja a porta aberta.
E + Dica da Autora: Falar de violência doméstica é algo muito profundo. Vai além de um texto como este, que mistura revolta com história de vida. Principalmente em tempos como este, em que palavras como machismo e misoginia já viraram piada, precisamos trazer para o palco estudos e pesquisas, falas academicamente autorizas. Falas que consigam mostrar às pessoas que nos cercam que a violência tem história, tem sociologia, tem cultura – que ela não é natural; que as diferenças entre homens e mulheres não representam superioridade de um sobre o outro; que a desigualdade imposta sobre a diferença foi construída, não há nada de natural nisso. Esse texto, a despeito de ter sido escrito por uma historiadora, não trilhou por essas vias. Não foi possível. Por isso, se você quer aprender mais com outras mulheres – pensadoras e intelectuais – escreve para nicolau.fab@gmail.com. Terei o maior prazer em compartilhar dezenas de artigos que fui colecionando ao longo dos anos. E para não perder o costume segue uma indicação de leitura: “Violência simbólica – Saberes masculinos e representações femininas” da Rachel Soihet. Este artigo está disponível online no site da Revista Estudos Feministas.