06 • novembro • 2017

Diversidade brasileira: A indústria da maquiagem tem atendido?


A beleza da mulher negra brasileira vem ganhando merecidamente destaque, mas os desafios para a indústria cosmética que não se empenha a favor da diversidade tão enraizada no país são vários. Para especialistas, os avanços até aqui estão bastantes relacionados ao universo online e a forte reivindicação da sociedade por representatividade. Blogs e canais de vídeos dedicados à maquiagem da pele negra, assim como os voltados para cabelos crespos e cacheados, então em alta. Só para que se tenha uma ideia, em agosto desde ano, pela primeira vez no Brasil, as buscas no Google por cabelos cacheados superaram a procura por cabelos lisos. Os dados, que foram divulgados pelo buscador revelaram um crescimento de 232% na procura por informações sobre cuidados com cabelos cacheados no último ano e o interesse por informações sobre cabelos afro subiu 309% em dois anos. Acompanhando esse desenvolvimento, o segmento – em especial de maquiagem – têm oferecido opções, no entanto, esse público parece ainda considerado apenas como um nicho de mercado.

Mais da metade (53,6%) da população brasileira é formada por negros e pardos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em número absolutos, estamos falando de uma população estimada em 110 milhões. Mas, apesar do avanço ser pequeno em relação a população existente, deve-se considerar uma vitória, pois já houve tempos ainda mais difíceis.

Advogada por formação, Maria do Carmo Valério Nicolau, proprietária da marca de cosméticos voltada para a pele negra Muene, no mercado há 28 anos, conta que passou por épocas onde produtos para sua pele eram extremamente escassos. “No final dos anos 1980, fui participar de um programa de TV para pedir donativos para um hospital. O maquiador do programa não tinha produtos para a minha pele e utilizou algo que me deixou como se eu estivesse mascarada.  Me senti embaraçada quando as pessoas que assistiram me perguntaram porque eu estava disfarçada no programa. A partir daí eu comecei a me interessar”, relembra.

Em seu espaço localizado em uma loja coletiva no 1º andar do Shopping Light, região central de São Paulo, Maria do Carmo recebeu a equipe do Moda Sem Crise. Elegante, imponente, usando chapéu e batom azul, a empresária contou que após diversas pesquisas, decidiu criar a linha de produtos voltados para seu tipo de pele e, em 1989, nasceu a Muene – que em dialeto angolano significa “meu senhor” ou “minha senhora”.

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Maria do Carmo Valério Nicolau criadora da Muene aposta na credibilidade e fidelidade de suas clientes – Foto: Marcela Fonseca

A marca de fabricação própria e natural, que hoje conta com uma diversidade de mais 150 itens, começou a sua história com 50 tipos de produtos. “Sofri muito preconceito no início e na verdade, até hoje sofro. As pessoas não acreditavam e não acreditam que eu poderia produzir e ser industrial e os empresários me negavam investimento. Tive que batalhar muito para conseguir”, afirma.

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Quase três décadas: Muene surgiu no final dos anos 1980 – Foto: Marcela Fonseca

Do outro lado dos pincéis e acessórios de maquiagem, Tati de Souza maquiadora que há nove anos atua como profissional de beleza, afirma o quanto sofreu com a escassez da diversidade na indústria cosmética, coisa que claro interferiu em sua vida pessoal e profissional. “Trabalho na área de publicidade de moda e social. Já na minha adolescência, quando comecei a me interessar por maquiagem, não haviam muitas marcas que produziam maquiagem para pele negra, a única marca que conhecia era Avon que fazia alguns tons para pele negra, mas, a tonalidade muitas vezes ficava muito clara, acinzentada, ou muito escura, avermelhada”.

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Profissional da Beleza Tati de Souza espera mais do mercado brasileiro de cosméticos – Foto: Tati Souza/Reprodução Facebook

Sem destaque ou representatividade, numa época até que recente, em 2014, mas ainda de possibilidades remotas, a psicóloga e youtuber Aline Custódio, decidiu ir em busca de soluções diante das dificuldades de um mercado que em plena década de 2010 no século 21 não atendia o seu tipo de pele. “Sempre gostei de maquiagens, principalmente coloridas, porém não encontrava referências, estava cansada de sempre ver e ouvir pessoas falando que para a pele negra a sombra deveria ser dourada e que não passava disso. Então resolvi criar meu canal no Youtube e ser minha referência”, relata Aline que compartilha o que aprende e sabe sobre o universo da maquiagem para a pele negra em um canal criado na plataforma em 2007 e que soma atualmente mais de 16 mil inscritos e 662 mil visualizações.

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Aline Custódio hoje dá dicas de maquiagem e fala também sobre autoestima em seu canal no Youtube – Fotos: Arquivo Pessoal

Motivação que mexeu também com a empreendedora Élida Aquino, fundadora e CEO da AfrôBox, com quem o mercado de cosméticos não foi diferente: “Sempre tive muitas dificuldades, principalmente nos produtos relacionados à pele. Agora há uma variedade maior de produtos, populares ou não. Mas, antes era bem raro encontrar produtos que fossem baseados nas especificações das peles negras. Na maior parte das vezes fiquei com o rosto prata e comprei muitas bases erradas.”

Da necessidade de ver mulheres negras priorizadas, Élida Aquino colocou em pratica o projeto AfrôBox – primeiro clube de caixas por assinatura no Brasil com foco em beleza negra e na variedade de cabelos afro. “Foi uma necessidade de nos ver sendo tratadas como protagonistas e carinhosamente. A AfrôBox, para mim, é a oportunidade de servir mulheres como eu, da forma como eu gostaria de ser atendida, com a consideração merecida. Depois, nosso serviço dá a oportunidade de novas experiências, descobertas mesmo, quebra de conceitos sobre o que é bacana ou não ‘para uma negra’ e leva em conta as características de cada associada.”

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Toda beleza importa: Startap AfrôBox surgiu em 2015 e segue empoderando mulheres – Foto: Divulgação

Representatividade que faz diferença

A exposição de modelos, atrizes e ativistas negras em programas de TV, protagonizando tramas em novelas e campanhas publicitárias, além dos concursos como o Miss Brasil – que trouxe por dois anos seguidos representantes negras – aos poucos transformam a realidade. Aliado a isso estão as redes sociais e o poder de reivindicação e exposição promovidos por elas, os grupos de discussão e debates, e os movimentos que propõem o empoderamento da mulher negra nos universos online e offline. Todas envolvidas cobrando não só por produtos específicos para a pele negra, mas também o verdadeiro engajamento das marcas.

Edição do concurso Miss Brasil que elegeu Raíssa Santana, candidata do Paraná, em 2016, contou com a participação de seis mulheres negras – Foto: Google Imagens

“Nossos movimentos coletivos como população negra e especialmente nos espaços femininos e negros, gritam cada vez mais alto que aqui somos mais de 50%, que vamos agitar as redes sociais caso a marca fale de forma desagradável ou não representativa, que vamos parar de comprar delas e preferir comprar de quem faz pensando na gente. Se a gente para de consumir algo, a roda para de girar e a grana para de entrar. Por isso, manter o fluxo de caixa é o motivo na maior parte das marcas que lançam produtos novos numa frequência absurda, para cabelos principalmente, prometendo que eles atendem nossas necessidades. Logicamente há exceções. Vejo marcas – poucas ainda, se considerarmos o gigantismo do mercado de beleza e cosméticos no Brasil – preocupadas em ouvir, em trabalhar melhor e reparar os danos já causados”, considera Élida Aquino.

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Élida Aquino fez da sua experiência o seu negócio, hoje a AfrôBox atende a mulheres de todo o país com curadoria de produtos para pele negra – Foto: Élida Aquino/Reprodução Facebook

Para Maria do Carmo Valério Nicolau, esse olhar voltado para a diversidade de peles deve sim ser vistos com bons olhos. “Quanto mais se produzir e atender a população, é melhor. Não é uma competição e sim uma luta que pode estar dando resultados, porque eles estão nos vendo, mas ainda há pouquíssimo investimento nisso”.

Em abril deste ano a marca Negra Rosa, lançou uma linha com cinco tons de bases exclusivos para pele negra. O blog criado em 2010 com o objetivo de propagar informações a respeito de itens de beleza para mulheres de pele negra, em 2016 se tornou também marca de batons e bases.

A cantora barbadiana naturalizada americana Rihanna, também enveredando pela indústria cosmética lançou em outubro passado a linha Fenty Beauty, na qual investiu em 40 tons de base para atender os mais diversos tipos de pele. A novidade chegou com força em 1.600 lojas, em 17 países, e com venda exclusiva em redes como a Sephora. E embora não haja notícias de sua chegada ao Brasil, resta às brasileiras realizarem suas compras por meio do site da marca.

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Fenty Beauty surge com o slogan “Beleza Para Todos” e investe em 40 tonalidades de base para a pele – Foto: Fenty Beauty Divulgação

Aline Custódio afirma que no Brasil além da Negra Rosa que atende a muitas meninas, servindo de referência, há também a maquiadora e youtuber Bruna Tavares do Pausa Para Feminices que incorporou em sua linha de cosméticos produtos capazes de atender mulheres negras. E menciona ainda sua experiência com a maquiagem no exterior. “Hoje morando nos EUA me deparei com outra realidade, muita opção de produtos. Acredito que agora as empresas de cosméticos no Brasil começaram a nos enxergar como consumidoras e vem lançando produtos que possam nos atender”, conta Aline, que também teve acesso aos produtos lançados por Rihanna. “Comprei para testar e é o vídeo que mais tenho visualizações (mais de 120 mil) acho também que esse lançamento dela possa influenciar empresas no Brasil a seguir na mesma direção, por isso sempre ressalto a importância de referências”.

O que esperar do futuro?

Apensar dos olhares já lançados para a mulher negra e o pontapé dado pela indústria brasileira, ainda faltam longos passos para que população miscigenada seja vista como real consumidor e não apenas como nicho de mercado. “Eu ainda não enxergo essa representatividade, acredito que as marcas ainda não nos ouvem e não apostam na mulher negra como potencial consumidora, tendo em vista o que acontece com marcas internacionais, como, por exemplo, a Fenty Beauty da Rihanna. Precisamos ver algo assim no Brasil, representatividade real”, opina a maquiadora Tati de Souza sobre esse que um dos segmentos mais fortes da economia brasileira.

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A indústria brasileira de cosméticos mesmo em tempos de crise cresce, no entanto, não se desenvolve na mesma proporção quando o assunto são produtos para a pele negra – Foto: Google Imagens

De acordo com a Associação Brasileira de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC), o faturamento em 2014 foi de R$ 101,7 bilhões e, em 2013, o valor ficou acima de 90 bilhões. No PIB (Produto Interno Bruto) nacional, o setor é responsável por 1,8%. Dados mundiais apontam que o Brasil é responsável pelo consumo de 9,4% desses produtos. E no mercado latino-americano, por sua vez, a fatia brasileira consumida é superior a 50%. No entanto, segundo Tati, o setor não preenche todas as lacunas e possibilidades. “Acredito que apesar de termos mais variedade no mercado, ainda são poucas, estamos caminhado a passos lentos, em vista de uma indústria de cosmética no Brasil que cresce, mas não desenvolve na mesma medida produtos para a pele negra. Não apenas maquiagens, mas produtos de cuidados específicos para a pele negra”, explica.

“O agito nos produtos para crespos e cachos por exemplo aconteceu depois de blogueiras e youtubers com cabelos nessas texturas, negras na maioria dos casos, começaram a mostrar formas de driblar a ausência de opções e não depender mais de marcas que não estavam nem aí. Depois que nossos produtos naturais entraram em ação, as marcas sentiram falta, ouviram as queixas. Agora estamos aqui, com mais produtos que antes e muitos deles são bons mesmo. Várias marcas acertam no produto, mas erram na comunicação dele – colocando cabelos trabalhados no Photoshop ou só modelos de pele menos escura, por exemplo. Fica a dica”, ressalta Élida Aquino.

A expectativa, apesar dos passos curtos, são boas, pois cada vez mais mulheres empoderadas, exigentes e em busca de produtos que atendam seus anseios estão se mostrando. E atentar-se a população negra como público consumidor, e mais do que apenas, observá-la, ouvi-la ainda é uma queixa. “Eles precisam enxergar que temos poder de compra, para que desta forma criem produtos que atendam nossas necessidades, finaliza Aline Custódio.

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